No âmbito do Fórum para a Competitividade, esteve de visita a Portugal o "guru" dos economistas: Jack Welch. Apesar do encontro ter decorrido à porta fechada, saltou imediatamente para as bocas do mundo uma das afirmações que proferiu aquando do seu discurso: "os portugueses deveriam sentir-se envergonhados do que dizem deles, lá por fora".
Dando voz aos que não apreciaram este seu comentário, Vitor Dias escreveu uma carta aberta no "Público" do passado dia 9.
Perguntem ao Jack
Tiveram considerável impacte na comunicação social as afirmações feitas sobre Portugal, num encontro promovido pelo Fórum para a Competitividade, por Jack Welch, que durante 20 anos foi chief executive officer da General Electric. Antes e durante a sua estada, Jack Welch foi apresentado como "um dos gestores mais admirados em todo o mundo" ou como "um gestor do outro mundo", embora o jornalista Robert Slater, talvez lembrado de que ele suprimiu cem mil empregos, também nos conte, no n.º 47 da Executive Digest, que ele "ganhou a alcunha de "Neutron Jack", numa alusão à bomba de neutrões que elimina pessoas mas deixa os edifícios de pé".
Recapitulando as suas declarações que tiveram mais repercussão, lembremos então que Jack Welch declarou que "é humilhante para os portugueses a percepção que do exterior se tem de Portugal como um país em contínua degradação e declínio ao longo dos últimos anos" e perguntou mesmo se os portugueses não se sentem envergonhados por isso. E aqui neste jornal, Pacheco Pereira apressou-se a assinalar que "Welch fez bem em dizê-lo e fazia-nos bem ouvir mais verdades como esta para substituirmos a nossa balofa e inconsequente auto-estima pela percepção de que a realidade não é propriamente um espelho do nosso excesso identitário". Confesso que tenho muita dificuldade em comentar, em sentido literal, quer a afirmação de Welch quer o entusiasmado juízo de Pacheco Pereira. Em primeiro lugar, porque, julgando conhecer minimamente os problemas de fundo do nosso pais, os seus níveis de atraso e os seus desafios presentes e futuros, não disponho de instrumentos credíveis para saber qual é a verdadeira "percepção que do exterior se tem de Portugal". Em segundo lugar, porque, como cidadão português, não me sinto nada atingido pela referência de Pacheco Pereira à "balofa e inconsequente auto-estima" nacional pois sou daqueles portugueses que já não têm paciência para tanta conversa tola sobre "auto-estima", sobre "euforias" ou sobre "depressões nacionais" (estas, por sinal, bem mais faladas), entendendo mesmo que, na maior parte dos casos, estamos perante construções atrevidamente totalizantes e artificiais, em cujo empolamento e irradiação a opinião publicada tem especiais responsabilidades.
Decididamente, é pois outra a contribuição que pretendo dar a propósito da visita e das afirmações feitas sobre Portugal por Jack Welch. Mais concretamente, como ele nos perguntou se não nos sentíamos envergonhados pela percepção exterior sobre a continuada degradação e declínio nacionais, o que gostaria mesmo é que, num qualquer ponto das suas tournées de conferencista ou numa sua eventual nova passagem por Portugal, Jack Welch respondesse a um conjunto de educadas, cordatas e inocentes perguntas. Como, por exemplo, se não se sente envergonhado pela "percepção exterior" da contínua degradação e declínio da imagem internacional dos EUA ao longo dos últimos anos e que, na União Europeia, segundo dados do Eurobarómetro, já chegou a atingir níveis de reprovação da política externa norte-americana acima dos 70 por cento. Se não se sente envergonhado por a agressão do seu país ao Iraque já ter causado, no mínimo, cem mil mortos, a maior parte dos quais civis não beligerantes. Se não se sente envergonhado pelas torturas e humilhações praticadas em Abu Grahib, pelo rapto e transporte pela CIA de cidadãos estrangeiros em voos por cima de países europeus (acrescente-se: com a desavergonhada conivência de muitos governos da Europa), pela situação dos detidos em Guantánamo prepotentemente excluídos dos mais elementares direitos de defesa e pelas gravosas limitações às liberdades consagradas no Patriot Act I e II. Se não se sente envergonhado por o seu país, o mais rico e poderoso do planeta, ostentar uma taxa de mortalidade infantil de sete por cada mil nascimentos (quatro em Portugal) e só tendo à sua frente, no âmbito da OCDE, países como o México, a Turquia, a Hungria e Eslováquia. Se não se sente envergonhado por parte da enorme riqueza criada pelos EUA resultar do controlo e exploração das riquezas naturais de outros países e do sistema de troca desigual que continua a afectar dramaticamente o desenvolvimento do Terceiro Mundo. Se não se sente envergonhado por, mesmo de acordo com os distintivos critérios do seu país sobre o que é "o limiar da pobreza", haver nos EUA 37 milhões de americanos que são considerados pobres, que uma em cada cinco crianças nasça pobre e que no estado da Luisiana a pobreza infantil atinja os 30 por cento. Se não se sente envergonhado por perto de 30 por cento dos seus compatriotas não disporem de seguros de saúde com a desprotecção e fragilidade que no sistema norte-americano isso significa. Se não se envergonha por os Estados Unidos terem se não a maior, pelo menos, umas das maiores populações carcerárias do mundo e que um em cada treze jovens seja preso antes dos 17 anos. Se não se sente envergonhado por, em termos de percentagem do rendimento nacional que cabe aos dez por cento mais pobres, os EUA (com 1,9 por cento) ficarem atrás, sucessivamente, do Japão, da Alemanha, da França, da Itália, da Grã-Bretanha e ganharem à China por um décimo (dados da Business Week, Setembro, 2005). Se não se sente envergonhado por ser cidadão da única superpotência com capacidade e apetite para intervir militarmente em qualquer parte do mundo e, entretanto, uma elevada percentagem dos seus compatriotas não ser capaz de apontar e identificar o seu próprio país num globo terrestre. Se não sente nem vergonha nem um sobressalto de consciência por no seu país, que goza da reputação de grande e incomparável democracia, a Presidência poder ser conquistada e exercida, sem escândalo por aí além, por um candidato que teve menos votos que outro. E por fim, abreviando o que podia ser uma lista muito mais longa, se Jack Welch não se sente envergonhado e humilhado pelos escândalos financeiros registados no seu país (Enron, WorldCom, etc.), pelas batotas e manigâncias de gestores que enriqueceram tão depressa quanto depressa empobreceram os accionistas que neles confiaram e pelo drama das centenas de milhares de americanos que viram as suas poupanças de reforma volatizarem-se de um momento para outro por causa do afundamento de muitos fundos de pensões.
A todas estas perguntas, para além de ver antiamericanismo onde só há verdades desagradáveis para os seus ouvidos, talvez Jack Welch - "o gestor do outro mundo" - respondesse apenas que o seu negócio são os negócios, que o sentimento de vergonha não é coisa que possa ser equitativamente exigida e que já não tem idade para aprender que há mais humanidade para além dos números e dos cifrões.